DIREITO À INAFASTABILIDADE DO PODER JUDICIÁRIO
Fredie Didier Jr.
Mestre em Direito (UFBA). Professor de Processo Civil da Universidade Salvador (UNIFACS). Professor Coordenador da Pós-graduação em Processo Civil da Faculdade Jorge Amado/Curso JusPodivm Centro de Preparação para a Carreira Jurídica (BA). Professor convidado dos Cursos de Pós-Graduação das Faculdades de Direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e de Vitória-ES (FDV). Sócio efetivo do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Advogado na Bahia e em Pernambuco.
Prescreve o inciso XXXV do art. 5º da Constituição Federal do Brasil: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de lesão A direito”. Trata-se, o dispositivo, da consagração, em sede constitucional, do direito fundamental de ação, de acesso ao Poder Judiciário, sem peias, condicionamentos ou quejandos, conquista histórica que surgiu a partir do momento em que, estando proibida a autotutela privada, assumiu o Estado o monopólio da jurisdição. Ao criar um direito, estabelece-se o dever —que é do Estado: prestar a jurisdição. Ação e jurisdição são institutos que nasceram um para o outro.1
Este dispositivo merece algumas considerações, para que seja mais bem interpretado/aplicado, pois os seus reflexos no campo do direito constitucional e do direito processual são tantos e tamanhos, que, para a solução das questões postas em exame, a delimitação do seu conteúdo e do seu alcance torna-se imperiosa.
Quando a Constituição fala de exclusão de lesão ou ameaça de lesão do Poder Judiciário quer referir-se, na verdade, à impossibilidade de exclusão de alegação de lesão ou ameaça, tendo em vista que o direito de ação (provocar a atividade jurisdicional) não se vincula à efetiva procedência do quanto alegado; ele existe independentemente da circunstância de ter o autor razão naquilo que pleiteia; é direito abstrato.2 O direito de ação é o direito à decisão judicial tout court.
Este princípio não se dirige apenas ao Legislativo —impedido de suprimir ou restringir o direito à apreciação jurisdicional—, mas também a todos quantos desejem assim proceder, pois, “se a lei não pode, nenhum ato ou autoridade de menor hierarquia poderá” excluir algo da apreciação do Poder Judiciário.3 Ressalve-se a situação da arbitragem, na qual os próprios contendores optam por retirar do Poder Judiciário o poder de solucionar os conflitos que advenham de determinado negócio jurídico.
A Constituição é peremptória:4 não há matéria que possa ser excluída da apreciação do Poder Judiciário —ressalvadas raríssimas exceções por ela mesma postas, como a do processamento e julgamento de certas autoridades em certas hipóteses (art. 52, I e II, CF/88).
Houve época em nossa história recente, de triste memória, que se tentou excluir do exame do Poder Judiciário a apreciação dos atos administrativos baseados nos atos institucionais do Golpe Militar de 1964. Esta proibição surgiu com emendas à constituição manifestamente inconstitucionais, porquanto, como regras de competência, e não de potência,5 não poderiam violar uma garantia fundamental (direito de ação), valor superior estruturante do Poder Constituinte. Com efeito, o Ato Institucional n.º 05/1968 estipulou, em seu art. 11, esta exclusão. Embora este dispositivo violasse frontalmente a Constituição de 1967 (art. 150, §4o), pela Emenda Constitucional 01/69 —para alguns, outra Constituição—, o AI 05 foi constitucionalizado, pois seus arts. 1816 e 182 determinavam que se excluíssem da apreciação do Poder Judiciário todos os atos praticados pelo comando da revolução de 1964.
Nada obstante os arts. 181 e 182 da CF de 1969 mencionarem a exclusão de apreciação, pelo Poder Judiciário, de atos praticados com fundamento no AI 5 e demais atos institucionais, complementares e adicionais praticados pelo comando da revolução, estas duas normas eram inconstitucionais. Isso porque ilegítimas, já que outorgadas por quem não tinha competência para modificar a constituição, estavam em contradição com normas constitucionais de grau superior (direitos e garantias individuais), infringiam direito supralegal positivado no texto constitucional (direito de ação).7
Também não há exigência de esgotamento de outras instâncias, administrativas ou não, para que se busque a guarida jurisdicional. Quando assim o deseja, a própria Constituição impõe este requisito, como ocorre em relação às questões esportivas, que devem ser resolvidas inicialmente perante a justiça desportiva para que, após o esgotamento das possibilidades, possam ser remetidas ao exame do Poder Judiciário.8 É a única exceção constitucional. Única.
A Constituição passada permitia, ainda, que, em relação a algumas matérias, se impusesse o esgotamento obrigatório das instâncias administrativas antes do ingresso no Judiciário —art. 153, §4o, da CF/69, que funcionava como uma espécie de condição de procedibilidade. 9 A CF/88 não repetiu a ressalva. A mudança na redação dos dispositivos, entretanto, afasta qualquer interpretação no sentido de que esta imposição perdure nos dias atuais. Repita-se: a única imposição de esgotamento de vias extrajudiciais é em relação às questões desportivas. E só. Não se admite mais a chamada jurisdição condicionada ou instância administrativa de curso forçado.10
Nosso sistema jurídico adota a jurisdição una.11 Diferentemente do que ocorre em França, por exemplo, não há uma jurisdição administrativa para o conhecimento de causas originárias de atos da administração —talvez seja pela influência do direito administrativo francês que pululem concepções reticentes quanto ao controle judicial dos atos da Administração Púbica. Qualquer que seja a espécie de lide, em nosso sistema, poderá ser examinada pelo Poder Judiciário. “Os Tribunais Administrativos, acaso existam nos países que adotam semelhante sistema, não proferem decisões definitivas e conclusivas”.12
O ordenamento constitucional anterior falava apenas em proteção a direito individual. Não há mais esta limitação, pois a própria Constituição de 1988 consagrou, em diversos dispositivos, a tutela dos direitos essencialmente coletivos (difusos e coletivos em sentido estrito).
Com inclusão da tutela jurisdicional da ameaça —inexistente na ordem anterior—, constitucionalizou-se a tutela preventiva, a tutela de urgência, a tutela contra o perigo, legitimando ainda mais a concessão de provimentos antecipatórios e cautelares. A Constituição é clara ao prescrever a tutela reparatória e a tutela preventiva. Grande evolução.13
Interessante questão, que deriva desta inovação constitucional, diz respeito às leis que proíbem ou limitam a concessão de medidas de urgência —notadamente contra o Poder Público (LF n. 4.348/64, 5.021/66, 8.437/92 e 9.494/97). No julgamento da medida cautelar na ADIN 223-DF (o inteiro teor deste acórdão é leitura obrigatória), o Supremo Tribunal Federal considerou constitucionais tais restrições, o que não impede, contudo, que o magistrado, no caso concreto que lhe for submetido, aprecie a constitucionalidade/razoabilidade da restrição.14 A lei que restringe não é inconstitucional em tese, mas pode revelar-se com o vício supremo quando concretizada.
O direito de ação —já visto como incondicionado— pertence a todos quantos aleguem ter sido lesados em seus direitos ou que estejam em vias de. Não apenas os indivíduos, mas também as pessoas jurídicas e algumas entidades despersonalizadas, como órgãos administrativos (PROCON, p. ex.) ou as chamadas pessoas formais (condomínio, massa falida, espólio etc.) têm o direito de formular pretensão perante o Poder Judiciário.
O conteúdo desta garantia era entendido, durante muito tempo, apenas como a estipulação do direito de ação e do juiz natural. Sucede que a mera afirmação destes direitos em nada garante a sua efetiva concretização. É necessário ir-se além. Surge, assim, a noção de tutela jurisdicional qualificada. Não basta a simples garantia formal do dever do Estado de prestar a Justiça; é necessário adjetivar esta prestação estatal, que há de ser rápida, efetiva e adequada. Esta última característica é que aqui nos interessa: atualmente, fala-se em tutela jurisdicional adequada. O que significa?
O princípio da inafastabilidade garante uma tutela jurisdicional adequada à realidade da situação jurídico-substancial que lhe é trazida para solução. Ou seja, garante o procedimento, a espécie de cognição, a natureza do provimento e os meios executórios adequados às peculiaridades da situação de direito material.15 É de onde se extrai, também, a garantia do devido processo legal.16 E daí se retira o princípio da adequação do procedimento, que nada mais é do que um subproduto do princípio da adequação da tutela jurisdicional.17
O cidadão, para obter aquilo que realmente tem direito de obter, precisa de uma série de medidas estabelecidas pelo legislador, dentre as quais avulta a criação de um procedimento adequado às particularidades de seu direito.18 As medidas hão de estar previstas expressamente pois a previsibilidade e a anterioridade do procedimento é que conferem à decisão judicial os penhores de legalidade e legitimidade, sendo dele requisitos inafastáveis.19 A importância deste princípio na criação legislativa é, pois, fundamental.20
São estes os principais aspectos a ser ressaltados na caracterização ´da garantia da inafastabilidade do Poder Judiciário. São os elementos necessários para a compreensão de vários problemas que dela decorrem, por exemplo: a) o controle jurisdicional das decisões administrativas, inclusive as proferidas por agências reguladoras (CADE, CVM etc.); b) a constitucionalidade da exigência de conciliação prévia para a instauração do processo trabalhista (manifesta inconstitucionalidade); c) arbitragem compulsória por força de lei (não confundir com a arbitragem convencional permitida (LF 9.307/96), mas não imposta, pela lei).
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