— Praskovja. . . — gaguejou. Ela parecia como se alguém a tivesse salpicado de sangue, de alto a baixo, com um jato de mangueira. Em um canto do abrigo jazia um monte de carne sangrenta e Miranski soube logo que aquilo fora uma vez a linda Darja Allanovna, seu diabinho sempre insatisfeito, sempre cobrando, que podia cantar Stenka-Rasin durante o ato de amor. — Pra. . . Praskovja. . .
Mais longe não foi. Um terrível golpe com o bastão dos ratos o jogou contra a parede. Uma chuva quente lhe correu pelo rosto e o cegou, e ele disse para si próprio: Isto é sangue. Agora é a minha vez. Agora Praskovja também vai me liquidar. . . Me mata com o bastão de ratos, sem ao menos me ouvir. Sem que eu possa lhe explicar que eu também sou uma vítima, a vítima da concupiscência de Darja.. . Praskovja, você está sendo injusta comigo! Eu não a amei. . . eu até tinha medo do seu corpo insaciável. . . Me deixe explicar tudo. . .
Miranski se encolheu e caiu de joelhos, com o rosto entre as mãos. Praskovja o golpeava com os dentes fortemente trincados, sempre com toda a força. Era como se estivesse batendo em um lobo que a atacara, como se se tratasse de salvar a própria vida.
Miranski levantou a cabeça mais uma vez. Mas ele não conseguia ver mais nada através da cortina de sangue diante dos olhos e também não escutava mais nada, porque a Praskovja lhe estraçalhara os dois ouvidos; sim, nem sentir podia mais, pois um nervo fora atingido, o que durante algum tempo eliminara a sensação de dor. Só tinha um pressentimento, o de que sua mulher estava, delirante, decidida a destruir tudo aquilo que antes destruíra a alma dela, e, ao levantar a cabeça pela última vez, pediu-lhe perdão.
O golpe seguinte atingiu o crânio de Miranski. O seu corpo tremeu e esta sensação foi a última que o Comissário percebeu, antes do eterno silêncio dele se apoderar.
Uma hora mais tarde Ugarov e Soja Valentinovna se puseram a caminho, para apaziguar a luta conjugal de Miranski. Caso eles ainda não se tivessem reconciliado. Talvez o pobre precisasse de ajuda.
— Agora talvez tenha chegado a hora — disse a Bajda, olhando para o seu relógio. — Agora estarão roucos de tanto berrar! Aqueles patetas do batalhão! Enviam uma visita sem avisar! Mas eles ouvirão o que eu vou lhes dizer! Venha, Victor Ivanovitsch. . .
Ao entrarem no abrigo de Miranski, o cheiro de sangue penetrou em suas narinas. A Bajda emitiu um grito de horror. O Tenente Ugarov sentiu-se nauseado. Praskovja Ivanovna Miranskaja estava sentada ao lado do cadáver estraçalhado de seu Foma Igorevitsch, com o crânio dele fendido em dois no colo. Ao lado dela, em um canto, jazia o corpo, não menos terrivelmente mutilado, que uma vez fora Darja Allanovna.
— Finalmente vocês chegaram — disse Praskovja abafada mas inteligivelmente. — Finalmente. . . Quanto tempo isto demora com vocês. Peguem suas pistolas e me matem. . . peguem alguma coisa com que possam me matar. . . mas, eu lhes imploro, por favor, me matem! Acabem comigo. . . depressa, acabem comigo. . . eu estou lhes implorando, meus caros. . .
De madrugada Praskovja Ivanovna conseguiu fugir.
Naturalmente a Bajda e o Tenente Ugarov não a tinham matado. Aquilo que já acontecera era suficiente para suscitar um escândalo, era mais do que suficiente para que chovesse sobre eles uma pletora de investigações penosas e inquéritos, notificações e punições. Com toda a certeza tanto a Central para Educação Política em Moscou como o General Conjev no Quartel-General da Frente da Estepe se ocupariam daquela tragédia. Um comissário e uma fuzileira famosa mortos a golpes de bastão de ratos por uma esposa ciumenta, e isto diretamente na frente! Que escândalo! Incrível! Camaradas, onde é que nós estamos? Onde estamos vivendo? Só uma coisa pode mobilizar nossas almas: A Grande Guerra Patriótica! Mais nada. . .
Depois que todas as moças tinham olhado os cadáveres terrivelmente mutilados de Miranski e Darja e fitado, em silêncio, a criminosa Praskovja, prenderam a Miranskaja, essa mulher terrível, que andou de cabeça erguida pelas trincheiras e depois tomou chá quente e comeu biscoitos de cevada no abrigo de comando e lhe explicaram que na manhã seguinte a levariam para o batalhão. Lá saberiam como continuar.
Para seus atos a Praskovja não tinha comentários.
— Eu não sei mais nada. — Divagava com voz arrastada. — De repente vi muito sangue a minha volta, e Fomascha estava deitado diante de mim, e uma moça, que antes estava tomando banho nua. . . e eu descobri que Foma me traía. . . e aí senti um rumorejar profundo dentro de mim, em minha volta, em todo lugar. . . E depois sangue, sangue. . . Muito sangue. . .
Mais não foi possível arrancar dela. A Bajda acreditava que ela estivesse em estado de choque e que no dia seguinte, quando Praskovja compreendesse o que fizera, tudo seria ainda pior.
— Isto nos vai arrastar a todas em um turbilhão — disse Soja Valentinovna cheia de pressentimentos, depois que aprisionaram a Miranskaja. — Quando eles em Moscou ficarem com raiva! Olhe, entre nós se mata um Comissário. . . Victor Ivanovitsch, sinto calafrios, só de pensar o que nos espera! Seremos submetidos a um inquérito como se nós fôssemos os homicidas. E aí muita coisa irá aparecer à luz do dia, coisas que até agora conseguimos disfarçar e que Miranski omitiu em seus relatórios. Sobre nós e as moças abater-se-à uma catástrofe!
Ela se apoiou em Ugarov, à procura de proteção, não mais a comandante da unidade feminina mais temida, e sim apenas uma mulher medrosa, uma pombinha indefesa, que procurava calor e proteção. Victor Ivanovtisch, até então sempre pronto para encontrar uma desculpa ou um ardil, mordia o lábio inferior e refletia.
— A gente poderia esquecer tudo — disse depois de algum tempo.
— O que quer dizer esquecer, meu amor?
— Não aconteceu nada — explicou Ugarov simplesmente.
— Como? — A Badja o fitou atônita e pôs a mão de Victor sobre seus seios magníficos. — Você sente como meu coração bate? Tenho medo. Você pode entender isto? Soja Valentinovna Bajda tem medo. . . não dos alemães, mas de Moscou. . .
— Estamos em guerra! — falou Ugarov, como se estivesse meditando. — Ninguém vai ficar chateado conosco, se tivermos baixas. . .
— Que quer dizer esta besteira? — interrompeu Soja amargamente. — Você fica aí fazendo piadas tolas, quando a vontade que a gente tem é de chorar. . .
— A piada é, Soitschka, que Miranski e Darja foram mortos pelos alemães ao defender sua pátria. Você vai escrever um relatório, um relatório bem patriótico, e eles ainda vão dar uma condecoração póstuma a Darja, promover Miranski, considerar ambos heróis e gravar seus nomes em alguma placa comemorativa. E naturalmente nós enterramos os dois heróis aqui. Até mostraremos túmulos de honra cheios de coroas de flores. Afinal de contas ninguém vai ter a idéia de exumá-los. . . E a morte do querido amigo Foma Igorevitsch e da nossa doce Darjanka será algo muito natural. . . Morreram defendendo a pátria. . .
— Você é um diabo, um verdadeiro filho de Satã! — exclamou a Badja, com admiração. — Mas não é possível.
— Não vejo obstáculo nenhum.
— Ainda há a assassina, Praskovja Ivanovna! Ela com toda certeza não vai ficar calada. . .
— Nem mesmo se assim puder salvar a sua vida?!
— Mas ela não quer salvar a sua vida, ela quer morrer! Tão depressa quanto possível!
— Desejos infantis como estes deveriam ser satisfeitos! — disse Ugarov tranqüilamente. — Se a gente puder fazer a pessoa ficar feliz assim. . .
— Você quer matá-la, Victor? — gritou Soja Valentinovna horrorizada.
— Ela deveria ter a oportunidade de satisfazer seu desejo. Soitschka, a gente deveria pensar a respeito, com toda calma. Por que diabo os alemães não nos poderiam prestar um favor uma vez?!
E assim aconteceu que, de madrugada, a porta do abrigo não estava trancada, quando a Miranskaja a sacudiu. Ela se espantou, saiu, viu que estava só, escapuliu da trincheira e correu, com a saia a esvoaçar, ao longo da estepe e através do povoado destruído, em direção ao rio.
A sentinela deu a notícia a Soja Valentinovna.
— Só é preciso saber pensar logicamente — disse Ugarov satisfeito, colocando o binóculo de longo alcance em volta do pescoço. — Agora é só esperar que os alemães não nos desapontem. ..
Praskovja Ivanovna alcançara a margem do Donez e mirou a supefície da água, que cintilava prateada no sol matutino. Então era isto, finalmente se podia morrer: a gente se jogava na água e se afogava. Não era uma morte agradável mas Foma Igorevitsch também não tivera uma morte bonita.
Ela desceu, cuidadosamente, a pequena encosta em direção ao Donez e se acercou da água.
Na sua frente, camuflado por um arbusto, estava Uwe Dallmann e a observava por seu telescópio de mira. Tinha servido como vigia noturno e já ia abandonar seu posto no momento em que percebeu o vulto feminino, que saía das ruínas do povoado e se aproximava da margem.
Hesslich insistira, apesar da tranqüilidade enganadora, que o rio continuasse a ser vigiado. Bauer III havia retirado os homens que colocara à disposição, entre eles Fritz Ploetzerenke, que fizera a proposta de pescar no Donez, com granadas de mão, coisa que Bauer III proibiu categoricamente. Hesslich e Dalmann, contudo, permaneceram lá fora, como até então; escondiam-se no celeiro do campo dianteiro e continuavam esperando.
— Elas vêm! — Hesslich repetia incessantemente. — Confiem em mim. . . elas vêm! Isto agora é um jogo de paciência, uma verdadeira prova de nervos!
Stella Antonovna não pensava diferentemente. Também ela repetia sem cessar! Esperem! Ele vem! Esse homem com a boina tricotada tem de voltar. Ele não pode agir de outra forma.
Sem que os dois soubessem seu duelo já começara.
Depois que passara a vigia a Dallmann, Hesslich finalmente se deitou na palha, para repousar. Quando chegou a hora de render o outro, a manhã surgiu como uma fita estreita no horizonte. Só mais uma meia hora e o sol começaria a brilhar. Então Dallmann também poderia se deitar. De dia moça nenhuma atravessava o rio — todos se limitavam a observar os outros, de margem para margem, por meio de grandes binóculos. Também Ploetzerenke, que nadara mais uma vez nu no Donez, não recebeu nenhum tiro.
— Este nós guardaremos — disse Marianka Stepanovna,observando-o, e estalou a língua. — Eu arrancarei o seu peru a tiros. . . será um prazer!
Depois Bauer III retirou seus soldados e o rio ficou verdadeiramente solitário, pois Hesslich e Dallmann permaneciam invisíveis. Sua camuflagem entre os bambuzais e a grama alta era perfeita.
Dallmann observava a mulher e hesitava. O que quer dizer isto, perguntou a si próprio. Será uma armadilha? De manhã, com tudo já claro, ela vem para o rio, pacificamente, fica ao lado da água e olha para as ondas, e se ela agora tirar a roupa e pular n’água, me belisquem no cu. . . mas eu não posso atirar em uma mulher nua! E Peter também não o consegue, topo qualquer aposta! Se ela ao menos tivesse uma carabina nas mãos. . .
A Praskovja não tirou a roupa, para quê? É mais fácil afogar-se vestida, com roupas que se encharcam d’água e puxam a gente para o fundo. Ela fitou a outra margem do Donez e nem imaginava que lá estavam inimigos alemães. Se o soubesse, teria entrado no rio, de cabeça erguida e berrado: “Seus porcos fascistas! Seus assassinos! Seus violadores de crianças! Condenados sejam para sempre, seus filhos da puta leprosos.” Teria ameaçado com os punhos, faria tudo para provocar os alemães — com o objetivo de que eles a liberassem de sua vida sem valor.
Mas ela não tinha nenhum pressentimento. Olhava, sem nenhum receio, para a outra margem e apenas se perguntava quão forte seria a correnteza e quão profundo o rio nesse lugar. Depois levantou a mão, retirou os cabelos da testa e decidiu simplesmente se deixar cair no rio. Queria deixar a água entrar dentro de si pela boca aberta. Deus, seja misericordioso. Me deixe morrer depressa.
Não foi Deus quem satisfez seu desejo, e sim Uwe Dallmann.
No momento em que a Praskovja levantou o braço, mostrou a testa e deu mais um passo para dentro d’água, Dallmann atirou. O tiro solitário ecoou seco pelo silêncio matutino; alguns pássaros d’água, assustados, se levantaram e depois afastaram-se, batendo as asas, por cima do rio. Depois reinou de novo o silêncio total. Praskovja Ivanovna caiu silenciosamente para trás, na areia branco-amarelada da margem.
— O problema está resolvido — disse o Tenente Ugarov. Ele estava deitado, com a Bajda e Stella Antonovna, na ruína do sítio campestre dianteiro e observava a margem de lá com seu binóculo. — Vocês viram onde estava o fuzileiro?
— Não! — Soja Valentinovna pousou o rosto sobre os antebraços. A morte de Praskovja a abalava, mas até ela percebera que tinha sido a melhor solução. Três, que morreram pela pátria. . . Por que deveriam fazer os de Moscou ficar nervosos com uma apresentação realista dos fatos? — Não prestei atenção.
— Ele deve estar deitado entre os arbustos, mas exatamente onde, eu também não sei — acrescentou Stella Antonovna. — Mas isto descobriremos, quando dermos uma olhada por lá. . .
— Quem vai buscá-la? — perguntou a Bajda.
Ugarov a mirou espantado.
— Que pergunta é essa, Soitschka. . .
— Mas ela não pode ficar lá deitada o dia todo...
— Por que não? Ela não sente mais nada.
— É desumano.
— Nem isto ela percebe agora. De dia não podemos buscá-la. Os alemães irão fazer uma festa, se nós formos até o rio como alvos móveis!
— Poderíamos levar uma bandeira branca conosco. . . — disse a Bajda, com voz abafada.
Ugarov sacudiu violentamente a cabeça.
— O que diria Miranski agora? “Nunca um batalhão de mulheres mostrou a bandeira branca. Para ele só existe a bandeira vermelha da vitória!” Devemos desonrar esta tradição por causa de Praskovja Ivanovna?
— Vou perguntar a Galina Ruslanovna — disse Soja, com a voz embargada de emoção. — Ela é médica. Pode colocar sua tira distintiva. Ninguém vai atirar nela.
— E se o fizerem? Existe alguma garantia?
— Vamos deixar que Galina decida. — A Badja esgueirou-se de volta para a ruína e se levantou. Ugarov e Stella a seguiram. — Vamos agora notificar o batalhão. Três mortos por artilheiros alemães. . .
Mas antes de fazê-lo, enterraram Foma Igorevitsch e Darja Allanovna Clujeva, isto é, o que restara dos dois. Não pareciam mais seres humanos. A Miranskaja os matara de um modo que se podia suspeitar que usara um machado e não um bastão de ratos.
Costuraram os cadáveres em fazenda de tendas de acampamento, abriram três covas em um dos jardins diante dos casebres incendiados dos camponeses e desceram os mortos. A terceira cova ficou vazia; faltava ainda a Miranskaja.
Soja Valentinovna pronunciou um breve discurso; depois jogaram terra em cima de Darja e Foma e puseram em cada um dos dois montes planos uma pedra do rio, nas quais Schanna Ivanovna pintara uma estrela vermelha. Ela ainda andava com o ombro enfaixado; seu rosto estava avermelhado pela febre. Também lhe permitiram jogar algumas pás de terra sobre os mortos, mas a Bajda não olhava para ela e nem lhe dirigia a palavra.
Nossa comunidade está fechada para você. Primeiro nos traga 10 cadáveres alemães.
Por volta de meio-dia a médica Galina Ruslanovna Opalinskaja rumou para o rio. Ugarov falara com ela com palavras angélicas, mas emudecera, depois que a Bajda lhe murmurou, venenosamente:
— Que medo você tem! Ha, vá alguém arrancar um só fio de cabelo do seu anjinho! Coloque-a em uma redoma de vidro, sua gatinha. . .
Aí Ugarov desistiu de deixar a antiga briga estourar de novo; levantou-se e disse, grosseiro:
— Vocês mulheres que o resolvam entre vocês! Eu agora vou escrever o relatório sobre a morte heróica dos três camaradas corajosos. . .
A Opalinskaja ajeitou a tira com o distintivo de médica sobre a manga e foi com a enfermeira Marfa Vassilijevna para o rio. Andaram lenta e corajosamente pela estepe, levando uma maça de tela com duas varas de alumínio.
No Donez Hesslich e Dallmann estavam em seu esconderijo e observavam-nas. Pouco depois que Dallmann matara a mulher, Hesslich, alarmado com o tiro, aparecera a seu lado.
— O que foi? — perguntou. Dallmann tinha apontado para a forma deitada na areia e mordera nervosamente o lábio inferior.
— Ela veio para o rio. . . e então. . .
— Homem, Uwe. . . mas ela não está usando uniforme. . .
— Isto pode ser um truque! Aqui entre as frentes não existem mais civis. Talvez os de lá agora tenham posto guerrilheiros em ação. . .
— De dia?!
— Eu sei, é uma merda. Ela estava ali, de repente. . . e eu atirei. E então? Você acha que os de lá não atirariam também, se você aparecesse na margem, vestido de calça de tirolês e camisa e gravata?! Era uma das fuzileiras, acredite. Porque ela foi passear assim no rio, feito besta, eu também não sei, mas isto não é problema meu.
Ainda de manhã, mais tarde, receberam uma visita. Na tropa da companhia surgira um médico auxiliar, Helge Ursbach. Recebera a missão de instalar um campo avançado de cuidado dos feridos — o que também era um sinal da ofensiva alemã projetada. O sargento-mor Pflaume estava muito contente com o novato, já que o médico auxiliar Ursbach anunciara ser um jogador perigoso de skat e Pflaume estava à procura de um para as longas noites claras de solidão. O terceiro homem do jogo de cartas era o Alferes von Stattstetten, que escrevia, todos os dias, uma carta lírica a sua ucraniana da companhia de propaganda.
— É certo que aqui existem fuzileiros? — perguntou Urshach em uma visita na linha dianteira.
— Na divisão do batalhão há 12 homens. Entre nós estão as estrelas, dois rapazes duros como granito. — O sargento-mor Pflaume que, juntamente com o Tenente Bauer III, mostrava os arredores ao médico auxiliar, apontou para as ruínas. — Lá estão eles de espreita e esperam as mulheres de carabina.
— Então é realmente verdade que diante de nós existe um batalhão de mulheres?
— Se realmente se trata de um batalhão inteiro, não o sabemos. — O Tenente Bauer III deixou a trincheira e se dirigiu com Ursbach para as ruínas. Pflaume ficou para trás e procurou Ploetzerenke, para brigar com ele. Uma briga feroz com o cabo era como o sal na sopa. . . colocava tempero no dia rotineiro e chato.
— De qualquer maneira temos a ver com uma divisão feminina que não apenas atira mas também assalta — continuou Bauer III. — Na retirada para o Donez fomos atacados algumas vezes por mulheres. Não nós da Quarta Companhia diretamente, mas ao sul, perto de Charkov, elas assaltaram. Que se tratava de mulheres, isto só foi verificado quando, ao recuperar algumas posições, vimos os mortos. Dizem que deu um forrobodó danado no Exército! E agora nós temos as mulheres na nossa divisão. Uma sorte, que o rio nos separa.
— É possível chegar perto do rio? — perguntou Ursbach.
— Claro. Mas não como pedestre. Nunca se sabe quando elas estão com vontade de aumentar o número de marcas em seu livro de tiros. — Bauer III olhou de lado para Ursbach. — O senhor faz questão de ir lá?
— Sim. O senhor me acompanha?
— Não. Eu estou a serviço da minha companhia, não dos dois “furadores” lá fora. — Estavam sob a proteção da última ruína, não longe da beira do rio. — O senhor está vendo o grupo de arbustos lá do outro lado? Devem estar deitados por lá. Sargento Hesslich e suboficial Dallmann. Eu lhe recomendo ir agachado, sempre com a cabeça para baixo. . . as moças têm um fraco por testas a descoberto. . .
Agora Ursbach estava deitado ao lado de Hesslich no emaranhado dos arbustos e observava a vítima de Dallmann pelo binóculo. Praskovja estava deitada, estirada, na areia da margem, os pés, com os sapatões n’água. Era muito fácil vê-la com a lente forte, perceber que o braço esquerdo estava sobre a cabeça, como se tivesse acenado no momento exato em que o tiro mortal a acertara.
— Mas ela não usa uniforme — Ursbach estranhou também. Dallmann virou os olhos para o céu e suspirou.
— Há quase dois meses temos um cessar-fogo. É possível que as moças tenham saudade de vez em quando dos trajes civis. Elas também trabalham nos jardins, com as blusas desabotoadas e pernas nuas, quando faz muito calor. Pode-se ver tudo daqui. . . Outro dia uma até andou pelada por aí! Fica-se de língua para fora, feito cachorro! O que quer dizer civil? — Dallmann cuspiu fora o pedaço de grama, que estivera a mastigar. — São inimigos. Se o senhor tivesse visto os buracos limpos nas testas dos nossos camaradas, pensaria de outra forma.
Por volta de meio-dia Galina Ruslanovna e Marfa Vassilijevna apareceram com a maça e desceram para a margem do rio. Curvaram-se sobre a morta Praskovja, retiraram-na da água e a puseram na maça. Galina observou longamente o buraco pequeno, redondo como um círculo, na testa de Praskovja. Um tiro de mestre. Será que fora o soldado alemão com a boina cinza de tricô, a respeito do qual falara Schanna?!
Sentia quase corporalmente que era observada lá da outra margem. Mas ela não se virou.
— Não olhe para lá — sussurrou para Marfa, como se pudessem ouvi-las. — Finja que estamos sozinhas. . .
No monte de arbustos Hesslich se virou para Ursbach.
— Visita de sua colega russa — disse à vontade. — Como se ela adivinhasse que o senhor está aqui. Então isto não se chama de telepatia? Mas agora o senhor vê: elas usam uniforme. E retiram os mortos.
— Então era uma da tropa! — Dallmann suspirou e ficou satisfeito. Estava aborrecido porque Hesslich parecia não concordar com o que ele fizera.
Ursbach observava a jovem médica pelo binóculo. Quando ela levantou a maça, depois de dar uma ordem a Marfa, ele viu nitidamente seu rosto, o pescoço, a blusa de campanha desabotoada e o início dos seios.
— Incrível, como é bonita! — exclamou rouco.
Hesslich acenou com a cabeça.
— Eles lá têm mulheres danadas de bonitas! A gente poderia imaginar uma morte mais linda? Com elas a morte tem cara de anjo.
— Ela não usa sutiã! — exclamou Ursbach, competentemente.
— Ora vejam, logo ele irá se afogar na água do próprio queixo! — Dallmann riu baixinho. —Sr. médico auxiliar, o senhor gostaria de fazer papel de assistente para ela?
Observaram como Galina e Marfa levaram a morta Praskoyja para cima da margem e depois marcharam de volta para o povoado reduzido a cinzas.
— Jesus Cristo, mas a outra tem uma bunda lasciva! — disse Dallmann e seguiu Marfa com o binóculo. — Mas isto é o que se chama liquidação total da capacidade de defesa! E sua colega, Sr. médico auxiliar. . . ela tem pernas que vão até o pescoço!
— E como! — Ursbach seguiu Galina Ruslanovna com o binóculo, até que ela desapareceu entre as ruínas. Depois baixou-o e se virou para o lado. — Elas têm a sua própria divisão de saúde. Deve tratar-se, pois, de uma unidade da maior importância. Mas se tudo é permitido na guerra. . . se o senhor me pergunta, direi que continua sendo uma sujeira pôr em campo mulheres armadas. Na pátria. . . sim. Como enfermeiras, nas fábricas, como ordenanças, nos escritórios. . . mas na frente, bem na frente, como tropa de choque. . . isto é realmente uma porcaria. . .
— Oxalá fossem elas tropas de assalto — disse Dallmzmn rindo, assinalando o duplo sentido da frase. — Mas elas o entendem de modo muito diverso. . .
— E geralmente são voluntárias. — Hesslich olhou para o relógio de pulso. — Madonas com dedo indicador mortífero. É sempre necessário recordar isto, mesmo quando sacodem a bunda e os seios lhes escapolem das blusas! — Hora do almoço. Posso convidá-lo para comer, Sr. médico auxiliar? Temos sopa de macarrão com miúdos de galinha. . .
— Fantástico. — Ursbach acenou para Hesslich. — Mas vocês vivem como Deus na França!
— Não! Como a morte na Rússia. . . — Hesslich esgueirou-se de volta, fez um rodeio para não revelar seu esconderijo e só se levantou ao chegar à ruína.
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