Se não foi no versículo 13 que Jesus começou a sua conclusão do Sermão do Monte, certamente agora ele o faz. Neste ponto ele não está preocupado em acrescentar mais instruções, mas deseja assegurar uma reação adequada à instrução que acaba de dar. "O Senhor Jesus finaliza o Sermão do Monte", escreve J. C. Ryle, "com uma passagem de aplicação penetrante. Ele volta-se dos falsos profetas para os falsos professos, dos falsos mestres para os falsos ouvintes".448 R. V. G. Tasker comenta de maneira semelhante: "Entretanto, não são somente os falsos mestres que tornam o caminho estreito difícil de achar e mais difícil de palmilhar. Um homem também pode enganar-se dolorosamente."449
Por isso, Jesus nos leva a um confronto próprio, colocando diante de nós a escolha radical entre a obediência e a desobediência, e nos convoca a um compromisso incondicional da mente, da vontade e da vida com os seus ensinamentos. Ele nos adverte quanto a duas alternativas inaceitáveis: a profissão de fé meramente verbal (vs. 21-23) e o conhecimento meramente intelectual (vs. 24-27). Nenhum dos dois pode substituir a obediência; na verdade, ambos constituem um disfarce da desobediência. Jesus enfatiza com grande solenidade que o nosso destino eterno depende de uma obediência total.
No que se refere a isso, os dois parágrafos finais do Sermão são muito parecidos. Ambos contrastam as reações certa e errada aos ensinamentos de Cristo. Ambos indicam que a neutralidade é impossível e que uma decisão definida tem de ser tomada. Ambos destacam que nada pode substituir a obediência ativa e prática. E ambos ensinam que a questão da vida e da morte no dia do juízo será determinada pela nossa reação moral a Cristo e a seus ensinamentos nesta vida. A única diferença entre os parágrafos é que, no primeiro, se oferece como alternativa para a obediência uma profissão de fé com os lábios, e, no segundo, um mero ouvir, também como alternativa para a obediência.
1. O perigo de uma profissão de fé simplesmente verbal (vs. 21-23)
Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus. 22Muitos, naquele dia, hão de dizer-me: Senhor, Senhor! porventura, não temos nós profetizado em teu nome, e em teu nome não expelimos demônios, e em teu nome não fizemos muitos milagres? 23Então lhes direi explicitamente: Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais a iniqüidade.
As pessoas que Jesus está descrevendo aqui estão confiando para a sua salvação em uma afirmação do credo, no que elas "dizem" a Cristo ou a respeito de Cristo. "Nem todo o que me diz" (v. 21). "Muitos, naquele dia, hão de dizer" (v. 22). Mas o nosso destino final será estabelecido, Jesus insiste, não pelo que lhe dizemos hoje, nem pelo que lhe diremos no último dia, mas por fazermos o que dizemos, por estar a nossa profissão verbal acompanhada da obediência moral.
Uma profissão verbal de Cristo é indispensável. Para sermos salvos, escreveu Paulo, temos de confessá-lo com nossos lábios e crer em nossos corações.450 E uma verdadeira profissão de fé em Jesus como Senhor é impossível sem o Espírito Santo.451 Além disso, o tipo de profissão cristã que Jesus descreve no final do Sermão parece, pelo menos superficialmente, que é totalmente admirável. Começando, é respeitosa; chama-o de "Senhor", exatamente como hoje em dia a maneira mais respeitosa e educada de se referir a Jesus ainda é dizer "nosso Senhor". Depois, a profissão é ortodoxa. Embora chamar Jesus de "Senhor" talvez não signifique mais do que chamá-lo de "senhor" (com minúscula), o presente contexto contém alusões a Deus como seu Pai, e a ele mesmo como Juiz, e portanto parece implicar em algo mais. Depois de sua morte e ressurreição, os cristãos primitivos certamente sabiam o que estavam fazendo, quando o chamavam de "Senhor". Era um título divino, uma tradução da palavra judaica "Jeová" no grego do Velho Testamento. Portanto, dentro dessa perspectiva, podemos dizer que isto constitui uma confissão exata, ortodoxa de Jesus Cristo. Terceiro, é fervorosa, pois não é um "Senhor" frio ou formal, mas um "Senhor, Senhor" entusiástico, como se o orador desejasse chamar a atenção para a força e o zelo de sua devoção.
Quarto ponto: é uma confissão pública. Não é uma declaração particular e pessoal de fidelidade a Jesus. Alguns até "profetizaram" em nome de Cristo, chegando até a insinuar que pregaram em público com a autoridade e a inspiração do próprio Jesus. Mais do que isto, a profissão de fé às vezes chega a ser espetacular. A fim de destacar este ponto, Jesus cita os mais extremos exemplos de profissão de fé verbal, a saber, o exercício de um ministério sobrenatural envolvendo profecia, exorcismo e milagres. O que essas pessoas destacam ao falar com Cristo no dia do juízo é o nome pelo qual ministraram. Três vezes usaram-no, sempre colocando-o em primeiro lugar para dar ênfase. Reivindicam que, em nome de Cristo, pública e abertamente confessado, eles profetizaram, expeliram demônios e fizeram muitas obras maravilhosas. E não temos motivo para não acreditar nas suas reivindicações, pois "grandes sinais e prodígios" serão realizados até mesmo pelos falsos Cristos e falsos profetas.452 Que profissão de fé cristã poderia ser melhor? Temos aqui pessoas que chamam Jesus de "Senhor" com cortesia, ortodoxia e entusiasmo, em devoção particular e ministério público. O que poderia haver de errado nisto? Em si, nada de mau. E, não obstante, tudo está errado, porque são palavras que não contêm a verdade; é uma profissão de fé sem realidade. Não os salvará no dia do juízo. Por isso, Jesus passa do que eles dizem e dirão para o que ele lhes dirá. Ele também fará uma declaração solene. A palavra usada no versículo 23 é homologësö, "confessarei".
A confissão de Cristo será, como a deles, em público, mas diferente, porque será verdadeira. Ele lhes dirigirá as terríveis palavras: Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais a iniqüidade, pois, embora tenham usado o nome dele livremente, Jesus não conhecia seus nomes.
A razão por que Jesus os rejeita é que a profissão de fé deles foi verbal, não moral. Era uma confissão apenas de lábios, não de vida. Chamam a Jesus "Senhor, Senhor", mas jamais se submeteram ao seu senhorio, nem obedeceram à vontade de seu Pai celeste. A versão de Lucas desta declaração é um tanto mais forte: "Por que me chamais, Senhor, Senhor, e não fazeis o que vos mando?"453 A diferença vital está entre o "dizer" e o "fazer". A razão por que Cristo, o Juiz, os banirá de sua presença é que são malfeitores, praticam a iniqüidade. Podem alegar feitos grandiosos em seu ministério; mas, no seu comportamento diário, as suas obras não são boas, são más. Que valor teria para tais pessoas tomar o nome de Cristo nos lábios? Como Paulo expressou alguns anos depois: "Aparte-se da injustiça todo aquele que professa o nome de Cristo".454
Nós que, atualmente, declaramos ser cristãos, fizemos uma profissão de fé em Jesus, particularmente na conversão e publicamente no batismo. Damos a impressão de honrar a Jesus, chamando-o de "o Senhor" ou "nosso Senhor". Recitamos o credo na igreja e cantamos expressivos hinos de devoção a Cristo. Até exercemos uma variedade de ministérios em seu nome. Mas ele não fica impressionado com nossas palavras piedosas e ortodoxas. Ele continua pedindo evidências de nossa sinceridade em boas obras de obediência.
2. O perigo de um conhecimento meramente intelectual (vs. 24-27)
Todo aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e as pratica, será comparado a um homem prudente, que edificou a sua casa sobre a rocha; 25e caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram com ímpeto contra aquela casa, que não caiu, porque fora edificada sobre a rocha.26 E todo aquele que ouve estas minhas palavras e não as pratica, será comparado a um homem insensato, que edificou a sua casa sobre a areia; 27e caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram com ímpeto contra aquela casa, e ela desabou, sendo grande a sua ruína.
Enquanto, no parágrafo anterior, o contraste era entre o "dizer" e o "fazer", o contraste agora é entre o "ouvir" e o "fazer". De um lado, diz Jesus, está a pessoa que ouve estas minhas palavras e as pratica (v. 24) e, do outro, a pessoa que ouve estas minhas palavras e não as pratica (v. 26). Depois ele ilustra o contraste entre os seus ouvintes, o obediente e o desobediente, com a sua conhecida parábola dos dois construtores, o homem sábio que "cavou"455 e construiu a sua casa sobre a rocha, e o tolo que não queria se aborrecer com alicerces e contentou-se em edificar sobre a areia. Enquanto os dois prosseguiam com a sua construção, um observador casual não poderia perceber qualquer diferença entre as duas casas, pois a única diferença estava nos alicerces, e estes não podiam ser vistos. Só depois que uma tempestade se desencadeou sobre as duas casas com grande ferocidade: "chuva no telhado, rio nos alicerces, vento nas paredes",456 foi revelada a diferença fatal e fundamental. A casa edificada sobre a rocha resistiu à tormenta, enquanto que a casa sobre a areia ficou irreparavelmente arruinada.
Da mesma maneira, os cristãos professos (os genuínos e os espúrios) freqüentemente se parecem. Não podemos facilmente distinguir qual é qual. Ambos parecem estar edificando vidas cristãs. Jesus não está fazendo uma comparação entre cristãos e não-cristãos que não fizeram nenhuma profissão de fé. Pelo contrário, o que é comum aos dois edificadores espirituais é que eles ouvem estas minhas palavras. Portanto, os dois são membros da comunidade cristã visível. Ambos lêem a Bíblia, vão à igreja, ouvem os sermões e compram literatura cristã. O motivo por que tão freqüentemente não podemos diferençar um do outro é que os alicerces de suas vidas estão ocultos aos nossos olhos. A verdadeira pergunta não é se ouvem os ensinamentos de Cristo (nem mesmo se os respeitam ou crêem neles), mas se fazem o que ouvem. Apenas uma tempestade revelará a verdade. Às vezes, uma tempestade de crises ou calamidades revela que tipo de pessoa somos, pois "a verdadeira piedade não se distingue totalmente de sua imitação até que venham as provações".457 Caso contrário, a tempestade do dia do juízo certamente o fará.
A verdade sobre a qual Jesus está insistindo nestes dois parágrafos finais do Sermão é que nem um conhecimento intelectual dele, nem uma profissão de fé verbal, embora ambos sejam essenciais em si mesmos, podem substituir a obediência. A pergunta não é se nós dizemos coisas bonitas, polidas, ortodoxas e entusiásticas sobre Jesus; nem se ouvimos suas palavras, se prestamos atenção, se estudamos, se meditamos e se memorizamos até empanturrar as nossas mentes com os seus ensinamentos, mas se nós fazemos o que dizemos e se fazemos o que sabemos; em outras palavras, se o senhorio do Jesus que professamos é a grande realidade de nossa vida.
Isto não é, naturalmente, ensinar que o caminho da salvação, ou o caminho para entrar no reino dos céus (v. 21), é pelas boas obras da obediência, pois todo o Novo Testamento oferece salvação apenas pela graça pura de Deus mediante a fé. O que Jesus está destacando, entretanto, é que aqueles que verdadeiramente ouvem o Evangelho e professam a sua fé sempre hão de obedecê-lo, expressando a sua fé em suas obras. Os apóstolos de Jesus jamais se esqueceram deste ensinamento. Isto se vê em suas cartas. A primeira carta de João, por exemplo, alerta muito quanto aos perigos de uma profissão de fé verbal: "Se dissermos que mantemos comunhão com ele, e andarmos nas trevas, mentimos . . . Aquele que diz: Eu o conheço, e não guarda os seus mandamentos, é mentiroso".458 A carta de Tiago, por sua vez, avisa dos perigos de um conhecimento intelectual. Uma ortodoxia árida não pode salvar, ele escreve, mas apenas uma fé que se traduza em boas obras; por isso, devemos ser "praticantes da palavra, e não somente ouvintes".459
Ao aplicar este ensinamento a nós mesmos, precisamos considerar que a Bíblia é um livro perigoso de se ler, e que a igreja é uma comunidade perigosa de se juntar, pois na leitura da Bíblia ouvimos as palavras de Cristo, e quando nos filiamos à igreja dizemos que cremos em Cristo. Como resultado, pertencemos a um grupo descrito por Jesus como aqueles que ouvem os seus ensinamentos e o chamam de Senhor. Nossa filiação, portanto, coloca sobre nós a séria responsabilidade de garantir que aquilo que sabemos e dizemos está sendo traduzido no que fazemos.
Assim, o Sermão termina com a mesma nota de escolha radical da qual estivemos conscientes o tempo todo. Jesus não coloca diante de seus discípulos uma lista de regras éticas fáceis de obedecer, mas um conjunto de valores e ideais que é totalmente diferente do caminho do mundo. Ele nos incentiva a renunciarmos a cultura secular prevalecente em favor da contracultura cristã. Repetidas vezes, durante o nosso estudo, ouvimos o chamado que faz ao seu povo para ser diferente de todos os outros. A primeira vez que isto tornou-se claro foi na responsabilidade que nos transmitiu de sermos "o sal da terra" e "a luz do mundo", pois estas metáforas colocam as comunidades cristã e não-cristã em posições antagônicas, por serem reconhecida e fundamentalmente distintas. O mundo é como alimento podre, cheio de bactérias que causam a sua desintegração; os discípulos de Jesus têm de ser o seu sal, evitando o apodrecimento. O mundo é um lugar escuro e triste, sem sal, mergulhado nas trevas; os discípulos de Jesus têm de ser a luz do mundo, dissipando suas trevas e sua melancolia.
A partir de então, os padrões opostos são pitorescamente descritos, e o caminho de Jesus é recomendado. Nossa justiça tem de ser mais profunda porque atinge também o nosso coração, e o nosso amor tem de ser mais amplo porque abrange também nossos inimigos. Na piedade devemos evitar a ostentação dos hipócritas e, na oração, a verbosidade dos pagãos. Por outro lado, nossas dádivas, nossa oração e nosso jejum têm de ser verdadeiros, sem comprometer a nossa integridade cristã. Devemos escolher para ser nosso tesouro algo que dure por toda a eternidade, que não se desintegre na terra; e por senhor devemos escolher a Deus, não o dinheiro e as propriedades. Quanto às nossas ambições (aquilo que preocupa nossas mentes), não a nossa própria segurança material, mas a propagação do governo e da justiça de Deus no mundo. Em lugar de nos conformarmos com este mundo, quer na forma dos fariseus religiosos, ou dos pagãos irreligiosos, somos chamados por Jesus a imitar o nosso Pai celeste. Ele é um pacificador. E ele ama até mesmo os ingratos e egoístas. Por isso devemos copiá-lo, e não aos homens. Só então provaremos que verdadeiramente somos seus filhos e filhas (5:9, 44-48). Então vem a alternativa de seguir a multidão ou a nosso Pai que está nos céus, ser como a cana agitada pelos ventos da opinião pública ou ser dirigido pela Palavra de Deus, pela revelação do seu caráter e pela sua vontade. E o propósito principal do Sermão do Monte é apresentar-nos esta alternativa, defrontando-nos, assim, com a necessidade indispensável da escolha.
É por isso que a conclusão do Sermão é tão apropriada: Jesus esboçando os dois caminhos (o estreito e o largo) e os dois edifícios (sobre a rocha e sobre a areia). Seria impossível exagerar a importância da escolha entre os dois, considerando que um deles leva à vida, enquanto que o outro termina na destruição, e que um edifício é seguro enquanto que o outro é derrubado pela calamidade. Muito mais notável que a escolha de uma carreira profissional ou de um companheiro para a vida ê a escolha da própria vida. Qual a estrada que vamos tomar para viajar? Sobre que alicerce vamos começar a construir?
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